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A mulher em Mia Couto

Esse texto foi preparado para a Roda de Conversa sobre Mulheres na Literatura na Universidade Regional de Blumenau sob a organização de Carla Cumiotto, Caroline Laíza Negherbohn, Daniela Matthes, Luciana Butzke e Paula Sofia da Igreja. A Roda de Conversa aconteceu ontem e teve como objetivo mostrar que no dia 8 de março “Nossa luta também se faz com livros” e como muita poesia! Segue o texto…

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Mulheres de cinzas abriu meu coração para a escritura de Mia Couto, esse poeta que visita histórias. O livro abre a trilogia As areias do imperador, seguido de Sombras da água e O bebedor de horizontes. Trata-se de um romance histórico que conta duas versões de parte da história de Moçambique, narradas por dois excluídos: uma mulher negra, Imani e um degredado português, Germano. Os três livros me leram nas férias, enchendo meus dias de poesia e de angústia as minhas noites, vivendo a vida de dois personagens, reféns de uma história que nunca lhes pertenceu.

Tendo como pano de fundo o conflito entre o último imperador moçambicano Ngunguyane e o rei de Portugal, Imani e Germano buscam desesperadamente mostrar a humanidade existente na sua condição de excluídos. Imani fala que não nasceu para ser pessoa: “Sou uma raça, sou uma tribo, sou um sexo, sou tudo o que me impede de ser eu mesma.”. Germano fala de uma doença de que padece que começa antes dele “começa na História da minha gente, condenada pela mesquinhez dos seus dirigentes.”.

Ambos não pertencem ao mundo que está a volta, e acabam encontrando na reciprocidade do que lhes falta a morada, a esperança da humanidade que ainda resta. Um encontro de exclusões que, em suas versões da História, não pode se realizar em sua plenitude. Eles estão presos em algo que lhes escapa: “à nascença, os nossos ancestrais escolhem o nome que teremos. Os patrões do mundo decidem o nome que deixamos de ter.” (Imani).

E assim, as vidas vão se consumindo no tempo presente, recuperando o passado encoberto pela História escrita pelos outros. Imani vai aos poucos voltando a si mesma: “As raízes de minha alma devolvem-me agora todo o meu ser. Não se trata apenas de regressar ao idioma da minha aldeia. Estas mulheres trazem de volta a minha terra e a minha gente. E trazem-me de volta a mim.”.

Mia Couto mostra, nas histórias contadas por Imani e Germano, a exclusão que irmana mulher e homem, e a busca de narrativas que tragam de volta o que foram e desejam voltar a ser.

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Nesse dia 8 de março, o que a leitura da Mulher em Mia Couto traz para a reflexão?

Um primeiro ponto é a poesia e a escritura que possibilita outras versões da história que não nos impeçam de ser nós mesmxs, que recuperem o que nós fomos e a força que ainda temos. Cabe refletir nesse dia: o que nos impede de ser nós mesmxs? Que outras versões da história podemos escrever?

Outro ponto é a “exclusão” que nos une como mulheres, mas nos une também como seres humanos. É importante nesse dia que pontuemos nossas lutas, mas que também reconheçamos as grandes ameaças que se colocam para todas e todos: a violência machista, os ataques à democracia e a reforma da previdência que ameaça nossos direitos como trabalhadoras e trabalhadores. Algumas lutas são das mulheres, outras são de todas e todos!

Um terceiro ponto, complementar ao anterior, é reforçar as diferenças quando isso se faz necessário, mas também superar as dicotomias quando a possibilidade se faz existir. Mia Couto tem um conto chamado A mulher em mim, no livro Cada homem é uma raça. Nele tem um trecho muito bonito que diz:

“- Não percebes? Eu venho procurar lugar em ti.

Explicou suas razões: só ela guardava a eterna gestação das fontes. Sem eu ser ela, eu me incompletava, feito só na arrogância das metades. Nela eu encontrava não mulher que fosse minha mas a mulher de mim, essa que, em diante, me acenderia em cada lua.”

Algumas de nossas lutas ainda necessitam que reafirmemos nossa condição de mulheres, mas chegará o tempo em que não seremos mais mulheres e/ou homens: seremos simplesmente humanos.

Um quarto ponto é a ideia de futuro e de mudança. Para Imani o tempo é cíclico e quando as cigarras se calam começa outra noite. Nesse tempo não há presente nem passado, vivos e mortos – tudo existe e está interligado. Para seu povo os mortos são sementes plantadas que continuam vivendo na terra e nos sonhos. Isso nos coloca uma perspectiva diferente do tempo linear, da vida que se realiza a partir de parâmetros que estão fora da gente. Imani nos provoca a pensar na vida passada e presente como um tempo para recuperar o que se é e deixou de ser. Como ela mesma diz: “Na poeira das cinzas escrevo os nomes dos que morreram. Para que voltem a nascer das pegadas que deixamos.”. Por isso nos identificamos com Imani: somos mulheres de cinzas.

Por Luciana Butzke

 

Referências:

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

COUTO, Mia. Mulheres de cinzas. As areias do imperador 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

COUTO, Mia. Sombras da água. As areias do imperador 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

COUTO, Mia. O bebedor de horizontes. As areias do imperador 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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