O olhar feminino sobre o papel da mulher no desenvolvimento do Vale do Itajaí

Escrever sobre mulheres que pensaram mulheres é um desafio, uma vez que o olhar sob esse objeto de pesquisa não se limita meramente ao caráter de gênero ou em “ser mulher”. Quer dizer, perceber apenas uma dimensão é muito impreciso. Ninguém é só uma coisa. Existem diversos elementos condicionantes na produção intelectual e pessoal (inclusive nesse próprio texto). A pesquisa iniciada em meados do primeiro semestre de 2017 e, mais intensivamente, no segundo semestre, trouxe ao debate esses múltiplos aspectos.

Como somos mais de uma coisa, o estudo propôs uma análise a respeito das contribuições das pesquisadoras do Vale do Itajaí, considerando a interface entre pensamento social, gênero e desenvolvimento regional. A partir de um mapeamento acerca das mulheres pesquisadoras, elegeu-se duas autoras. A socióloga Anita Moser, natural de Rodeio, que pesquisou, sobretudo, as condições de trabalho das mulheres campesinas que migraram para a indústria, no contexto de Rodeio. O livro analisado é A nova submissão: mulheres da zona rural no processo de trabalho industrial (1985). A historiadora Maria Luiza Renaux Hering (1946-2017), natural de Brusque, que pesquisou o modelo de colonização e industrialização no Sul do Brasil. O outro lado da história: o papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950 (1995) é a obra analisada da Maria Luiza Renaux neste estudo.

O intuito desta exposição é compartilhar a síntese realizada acerca da vida e obra de ambas. Essa síntese compõe uma pesquisa mais ampla que analisou as obras citadas acima e sua relação os percursos formativos. Por que trabalhar vida e obra? Lucien Goldmann cunhou às ciências sociais e humanas uma categoria metodológica para se pensar a realidade histórica. Partindo das especificidades metodológicas das ciências humanas, em relação às ciências naturais, Goldmann formula o Estruturalismo Genético. O método consiste na análise das totalidades estruturadas, ou seja, considera-se a dialética entre o todo e as partes. A totalidade é entendida como uma realidade histórica em construção, um processo contínuo, pela qual o sujeito constrói teoricamente a totalidade, fazendo parte, assim, desse processo. As partes, ou “estruturas internas”, por sua vez, não existem em absoluto, pois a totalidade é submetida a um processo de variação. Dessa forma, o auge do paradigma é o da totalidade condicionando as partes, em uma relação dialética. (LÖWY; NAÏR, 2008. GOLDMANN, 1991).

Nessa perspectiva, a dialética entre a vida/carreira e obra/produção intelectual das autoras que tomaram o Vale do Itajaí como referência se dá através de uma perspectiva individual e coletiva. A seguir, analisemos, então, alguns resultados comparativamente entre as autoras.

Anita Moser e Maria Luiza Renaux, são duas autoras contemporâneas que concentraram seus estudos sobre a condição feminina e sua relação com o desenvolvimento e região. Elas viveram em contextos sociais e de vida muito próximos no que se refere ao período histórico; Anita nasceu em 1936 e Bia em 1946. A vida delas tem similaridades que consiste, sobretudo, em três aspectos explanados a seguir: região, família e religião.

Anita Moser viveu em Rodeio, uma cidade pequena e de característica predominantemente rural até meados 1960; após esse período a cidade passa por um processo de transformação no modo de produção, adotando, assim, a dinâmica capitalista. A religião católica estava no cerne cultural do município de imigração italiana. Nesse sentido, festas e celebrações cristãs constituíam um calendário rigoroso em torno da comunidade. No que se refere à família, Anita Moser tem origem em uma família tradicional de Rodeio. Trata-se de uma família de origem italiana, vinda do Tirol, parte ocidental da Europa Oriental. As mulheres de Rodeio tinham, na época, três opções de escolha: trabalho, casamento ou estudos. É nesse contexto que Anita Moser viveu até os 11 anos. Por viver em uma estrutura, pela qual a religião influenciava a educação, Anita muda-se para Florianópolis para estudar no Colégio Coração de Jesus, caracterizado por internato. Nesse ambiente ela aprendeu novas atividades, como, por exemplo, piano, violão e canto; além de participar de atividades de caridade, celebrações religiosas, etc.

Maria Luiza Renaux, por sua vez, viveu em Brusque, município com poucos resquícios da agricultura, pela qual o processo de industrialização era significante para a economia local. Pertencente a uma família tradicional e pioneira na industrialização catarinense, os imigrantes da família de Bia eram alemães e seus antepassados viviam em Baden, sul da Alemanha. A religião protestante também representava a base moral da cidade. Nesse sentido, a escola, a família, o trabalho e demais esferas sociais eram condicionadas pela base moral religiosa. Bia incorporou costumes e tradições da aristocracia, provindos de sua família. Assim, aprendeu desde criança, o apreço pela leitura, cinema e demais artes. Estudou durante sua infância e adolescência em um colégio tradicional de Brusque, o Colégio São Luiz, também de orientação religiosa.

Ambas famílias eram tradicionais, em seus contextos, no que se refere à origem, posses e base moral. Origem enquanto um condicionante social, no sentido das novas opções oportunizadas aos imigrantes no período de colonização. Famílias de posses no sentido econômico, uma vez que a família de Anita possuía recursos no meio rural de subsistência e a família de Bia era pioneira na industrialização do ramo têxtil no Vale do Itajaí. A base moral de ambas estava fundamentada na religião. Bia na protestante e Anita na católica. Como explanado anteriormente, a religião condicionava diversos aspectos sociais em ambas as cidades pela qual viveram Anita e Bia.

A formação acadêmica de Anita e Bia são distintas, porém com a aproximação das Ciências Humanas. Anita Moser estudou Ciências Sociais na graduação e seguiu o mestrado em Sociologia. Maria Luiza Renaux estudou História e seguiu o doutorado em História Social. Bia justifica sua escolha acadêmica pela influência familiar e a vontade de escrever sobre a condição humana, sobretudo, no que se refere aos imigrantes colonos do seu contexto familiar empresarial. Anita, justifica o ingresso no mestrado pela vontade de entender o contexto de Rodeio, no que tange as consequências da transição de um modo de produção baseado na subsistência para o modo de produção capitalista.

Em seus percursos formativos, vale ressaltar que a ênfase nos estudos das duas pesquisadoras são notadamente opostos. Anita Moser, sensibilizada por ser mulher, em Mulheres da zona rural no processo de trabalho industrial procurou entender como as mulheres se submetiam às novas relações de trabalho e a nova situação social de Rodeio da década de 1970. Para tanto, Anita Moser propõe analisar o outro lado da industrialização, através de uma perspectiva crítica e com foco nas consequências que envolvíam a dinâmica de produção capitalista pelo processo de trabalho. A capa do livro (ver figura número 16) da Anita Moser sugere o propósito do estudo, ao se referir às relações capitalistas e a exploração da mão de obra feminina.

Maria Luiza Renaux, por sua vez, em O outro lado da história: o papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950 estudou os aspectos da vida social e privada dos colonos imigrantes do Vale do Itajaí. Procurou localizar os papeis femininos em diferentes fases do Vale do Itajaí: i) período inicial da colonização; ii) constituição do modo de vida burguês; iii) industrialização e proletarização; iv) período pós-guerra. Assim, destacou o papel da mulher como chave da estrutura familiar e do desenvolvimento, uma vez que as mulheres, em sua existência doméstica, guardavam valores, disciplina, amor ao trabalho, etc. A capa do livro da Maria Luiza Renaux (ver figura número 16), sugere, também, o objetivo do estudo: descrever o cotidiano, a história privada, das mulheres burguesas e sua relação com o Vale do Itajaí.

Capa do Livro A nova submissão de Anita Moser e O outro lado da história. de Maria Luiza Renaux.
Fonte: Moser, 1985; Renaux, 1995.

Vale destacar que ambas as autoras se debruçaram sobre temáticas relacionadas ao local e regional do contexto em que viveram. Quer dizer, Anita Moser viveu em Rodeio até os 11 anos e, ao se mudar para Florianópolis, ainda possuía vínculo com a cidade por via da família. Sensibilizada com as mudanças econômicas e do modo de produção buscou compreender as relações de conflito do município. Maria Luiza Renaux viveu boa parte de sua vida em Brusque – só se ausentou no período dos estudos – e buscou entender a condição humana ao seu redor (imigrantes, empresários, operários). Este fenômeno é observado por Segato (2016, p. 27),

La experiencia histórica masculina se caracteriza por los trayectos a distancia exigidos por las excursiones de caza, de parlamentación y de guerra entre aldeas, y más tarde con el frente colonial. La historia de las mujeres pone su acento en el arraigo y en relaciones de cercanía. Lo que debemos recuperar es su estilo de hacer política en ese espacio vincular, de contacto corporal estrecho y menos protocolar, arrinconado y abandonado cuando se impone el imperio de la esfera pública.

Nesse sentido, a esfera pública é marcada historicamente pelos grandes atos da força e coragem masculina. Contudo, a contribuição feminina é um vínculo a ser resgatado na esfera pública. Além disso, pode-se pensar que a história das mulheres está conectada ao local e ao regional (cercanías), compondo, assim, a noção de espacialidade ao pensamento social, desenvolvimento e discussões de gênero.

O recorte de análise das obras das autoras envolveu as seguintes variáveis: a) região, economia e cultura; b) família, patriarcalismo e colonização; c) classes sociais e gênero e d) trabalho e gênero. Tais variáveis compunham um sistema mais amplo de categoria: (1) cultura e gênero, (2) região e (3) sociedade e economia. Dessa forma, a partir desse direcionamento, o quadro abaixo, procura sintetizar a análise da obra das autoras através das variáveis.

A variável regional, economia e cultura é identificada em Anita Moser quando ela enfatiza a região e a cultura como funcionais à economia capitalista, na importância das instituições tradicionais nesse processo e no papel da religião com base moral. Maria Luiza Renaux dá ênfase ao papel da colonização alemã no processo de industrialização do Vale do Itajaí e da mulher como chave da estrutura familiar.

A família, patriarcado e colonização aparecem na escrita de Anita Moser na relação entre a colonização italiana e o suporte na religião católica, cerne da submissão feminina em sua estrutura mais ampla. Maria Luiza Renaux destaca nessa variável o papel da família, em especial a burguesa, enquanto reprodutora das tradições e costumes. A mulher também teria um papel central para manter o elo entre a cultura dos países de origem dos imigrantes com o Mundo Novo do Vale do Itajaí.

Na variável classes sociais e gênero Anita Moser apresenta um quadro teórico para perceber as relações de poder na unidade fabril analisada, além disso, percebe as relações sociais e a organização da indústria a partir de uma imersão de campo. Destaca que o consumo da mulher operária é fruto do seu trabalho. Maria Luiza Renaux dá ênfase ao cotidiano da mulher aristocrata, da mulher burguesa e da mulher assalariada. O Consumo da mulher é visto como resultado do trabalho do marido.

Por fim, na variável trabalho e gênero aparecem, na escrita de Anita Moser, as interfaces da condição feminina no trabalho rural e industrial. Em específico no trabalho industrial, denuncia os instrumentos de controle e pressão, bem como as consequências, do sistema capitalista. As relações de gênero e trabalho em Maria Luiza Renaux representa progresso material. Nas diferentes gerações analisadas, ela evidencia o trabalho feminino (rural, doméstico, industrial ou profissional) enquanto chave do desenvolvimento do Vale do Itajaí.

O papel da mulher é objeto da reflexão das duas autoras: tanto do ponto de vista crítico, da submissão da mulher agricultora operária; quanto de seu protagonismo na classe burguesa. Elas conseguem observar a trajetória das mulheres no Vale em momentos históricos diferentes, mas com olhares distintos, trazendo uma contribuição importante para o resgate do papel da mulher no desenvolvimento do Vale do Itajaí. Nessa perspectiva, procurou-se, através do mapeamento e síntese da vida e carreira das autoras, localizar na produção intelectual uma estrutura mais ampla, a totalidade. Quer dizer, ao analisar as categorias e variáveis nas obras, paralelo ao contexto de vida é possível perceber a dialética entre o todo (a vida) e as partes (obra e texto).

Referências:

GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

LÖWY, Michel; NAÏR, Sami. Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

MOSER, Anita. A nova submissão: mulheres da zona rural no processo de trabalho industrial. Porto Alegre: EDIPAZ, 1985.

RENAUX, Maria Luiza. O outro lado da história: o papel da mulher no Vale do Itajaí 1850-1950. Blumenau: Ed. da FURB, 1995.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016.